terça-feira, outubro 17, 2006
Fahrenheit: uma experiência total
Um dos temas mais ambiguos e que ultimamente tem gerado alguma discordância no mundo dos videojogos, por incrível que pareça, baseia-se na categorização dos mesmos. Hoje em dia tem-se tornado complicado afirmar que um determinado título é de Acção ou Aventura, ou Estratégia ou Simulação. Não existe uma regra que defina com clareza as diferenças neste tipo de categorização. Mas, e mesmo que houvesse, Fahrenheit ou Indigo Prophecy (US title) (Quantic Dream, 2005) iria certamente levantar uma nova discussão em torno do assunto. Este título foi pensado e abordado como um filme e resultou num verdadeiro filme jogável abalando por completo a ideia levantada pelo autor Vicente Gosciola (2003) quando afirma que o videojogo "é uma espécie de plano-sequência em animação 3D, mas muito interactivo, onde diversos personagens e objectos das diversas cenas e dos diversos ambientes estão em movimento e ligados entre si" (1). O videojogo é cada vez menos um "plano-sequência" mas um conjunto de sequências de planos que vai sendo apresentado através de um processo de montagem que visa, na maioria das vezes, assegurar o ritmo e a continuidade espacial e temporal. Numa só totalidade, este filme/videojogo consegue reunir elementos provenientes de The Matrix, como é o caso das acrobacias do personagem principal, lutas, momentos de acção em slow motion e a presença de um oráculo, elemento que evidencia uma clara diferença entre "conhecer o caminho e percorrê-lo"; uma disposição visual de split screen muito ao estilo da série 24 ou do filme Timecode (2000), tendo como ponto de partida um crime e um puzzle por resolver bem ao estilo da série CSI: Crime Scene Investigation.
Logo no menu inicial, é possível o jogador reparar que algumas das opções são no mínimo curiosas. O habitual "New Game" foi substituído por "New Movie" bem como "Load Game" substituído por "Chapters". Antes de se iniciar o jogo propriamente dito, o jogador deverá seleccionar o curto tutorial, onde irá "conhecer" o realizador de Fahrenheit que lhe explica as acções possíveis durante a rodagem do seu filme, bem como outras que terá que descobrir ao longo da jogabilidade. Os cenários estão montados, as personagens também e o guião irá constantemente ser sujeito às decisões que o jogador tomar ao longo da narrativa. Neste ponto a confusão inicial torna-se inevitável, pois sendo um videojogo, o jogador irá participar num filme, reforçando uma clara dupla mecanização inerente à complementariedade existente entre jogador e espectador, entre o dar e o receber, entre o jogar e o ver...
A interactividade presente na narrativa, i.e, na construcção activa do guião do filme, é reforçada por um processo de hiperselectividade que varia consoante o número de escolhas que o jogador terá que efectuar ao longo da sua jogabilidade. As sequências dessas escolhas são apresentadas em tempo real, sendo possível verificar o rumo dos acontecimentos e as sequências das decisões que são tomadas. Mesmo neste ponto verifica-se um "sentido inverso" no que diz respeito ao conceito de imersão defendido por Neal McGann (2003) ao longo da sua investigação. Para o autor, a imersão é atingida quando a interface se torna intuitiva e o mais possível transparente aos olhos do jogador (2). Em Fahrenheit essa "transparência" é-nos fornecida logo à partida, havendo um processo de imersão gradual, conforme vamos avançando na narrativa. Na sua tese, o autor Jesper Juul (1999) refere que "narrativity" e "interactivity" não poderão ocorrer ao mesmo tempo, uma vez que narração implica contar algo que já aconteceu, enquanto que interactividade requer "real time". Contudo, Juul evidencia o título Myst que, assim como Fahrenheit, contém uma história a qual o jogador vai descobrindo durante o jogo. Desta forma, estes dois títulos (assim como outros seguramente), conseguem "escapar aos conflitos inerentes presentes nas narrativas interactivas" (3) desviando-se da principal problemática levantada por Jesper Juul.
Este título é um verdadeiro exemplo de que nem sempre a jogabilidade se sobrepõe à narrativa, sendo esta a principal motivação durante a sua longevidade. A relação de proximidade que estabelecemos com os personagens de Fahrenheit irá traduzir-se na forma como pensamos e lidamos (ou deveriamos lidar) com determinados problemas associados à nossa vida social, profissional e amorosa de maneira a que o arrependimento não se sobreponha nas acções futuras. Isto porque a ideia base do jogo do gato e do rato assume uma maior complexidade quando o jogador terá que controlar ambos, ou seja, os detectives e o fugitivo. Como fugitivos teremos que pensar nas acções dos detectives acontecendo o mesmo na situação inversa.
Fahrenheit é um título sólido, sério, adulto e fortemente motivado pelo desempenho do jogador. É videojogo porque - entre outros elementos - requer jogabilidade, é livro porque a narrativa avança de forma contínua e gradual, é filme porque se guia através de uma linguagem e estética cinematográfica...
É simplesmente uma totalidade que resultou numa das melhores experiências que tive nestes últimos anos!
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(1) GOSCIOLA, Vicente (2003), "Roteiro Para as Novas Mídias – Do Game à TV Interactiva", São Paulo, Editora Senac, pp. 197.
(2) MCGANN, Neal (2003), "Watching Games and Playing Movies: The Influence of Cinema on Computer Games", Masters Thesis, Dublin Institute of Technology, pp. 10.
(3) JUUL, Jesper (1999), "A Clash Between Game and Narrative", a thesis on computer games and interactive fiction, Institute of Nordic Language and Literature, University of Copenhagen, pp. 4.