quarta-feira, dezembro 14, 2016

The Last Guardian: uma comovente viagem de superação

The Last Guardian conta-nos a história de uma viagem extraordinária de dedicação, perseverança e superação. Conta-nos a história de uma criança, de uma enorme criatura (Trico) e da relação de confiança, amizade, amor que vai sendo fomentada entre os dois ao longo do jogo. Nós jogadores, fazemos parte dessa relação, interagimos, criamos, experimentamos, exploramos os mais diversos cenários que compõem o mundo virtual que Fumito Ueda decidiu criar. Dando seguimento ao seu portfólio ímpar (Ico e Shadow of the Colossus), são notáveis as inúmeras referências e o seu cunho pessoal nos elementos que compõem as mais diversas imagéticas interactivas.
Existe uma certa magia em todos os jogos de Fumito Ueda e The Last Guardian não é excepção. É um jogo que vem preencher uma “falha” na indústria dos videojogos pois apresenta-nos uma experiência muito característica e diferenciada como já não se via desde 2005, precisamente com o último trabalho de Ueda. Um mundo virtual de contrastes para descobrir, com luz e escuridão, amplo e limitado, pacífico e perigoso, vibrante e cinzento, vazio e preenchido. Um mundo desenhado tanto para Trico como para a criança, um mundo confinado a fronteiras bem definidas mas ao mesmo tempo aberto à navegação.
The Last Guardian mostra-nos uma visão fiel aos princípios artísticos de Fumito Ueda: dar realismo à sua imaginação criativa. Esse "realismo" encontra-se no jogo representado por Trico que nos acompanha do início ao fim. Uma mescla de diferentes animais num só. Uma personagem viva, orgânica e com vontade própria, que preenche os diversos cenários e rouba todo o protagonismo na narrativa que se vai desenrolando ao longo da progressão. O jogo começa com Trico acorrentado, ferido, cansado, agitado e agressivo, que suspeita de qualquer tipo de abordagem mais directa por parte da criança. Sente-se um medo na escuridão do cenário frio que nos é apresentado. O silêncio é interrompido por breves pensamentos do narrador ou por sons de aflição e suspeição que Trico emite às tentativas de aproximação da criança. Temos aos poucos que tentar ajudar Trico, comunicar com ele, alimentá-lo, remover todas as lanças que tem espetadas no seu corpo uma a uma e subir para cima dele a fim de o libertar da corrente que tem presa ao pescoço. Esse primeiro momento no início do jogo marca uma importante correlação entre a forma e o conteúdo, uma pequena mudança das cores na estética do jogo (cores mais luminosas, quentes, vibrantes) permitem enaltecer a mudança que ocorre também no estado de espírito de ambas as personagens, que começam a partir daí a desenvolver algo verdadeiramente especial e comovente.
O ritmo propositadamente lento da jogabilidade dá tempo suficiente para amadurecer uma relação de amizade, confiança e compreensão. Com o passar das horas, Trico e a criança vão-se tornando num só. As suas capacidades, os seus pontos fortes e fracos complementam-se numa cooperação constante entre si, pensada desde o início para a resolução dos mais diversos puzzles e obstáculos que vão surgindo pelo caminho. Trico luta, salta e protege sempre a criança, colocando a sua própria vida em risco. É comovente vermos Trico parado numa plataforma, vulnerável e impedido de progredir por alguma razão e sempre a olhar para a criança que tenta por outro caminho desimpedir a passagem. A animação na sua expressão de preocupação e receio assim como os sons que vai emitindo, acabam por manter a relação sempre próxima e presente apesar da distância que, por vezes, possa ocorrer. 
The Last Guardian tem falhas graves de execução que não podem ser ignoradas (implementação da câmara em espaços fechados, algumas falhas ao nível das colisões e interface, por vezes, intrusiva e datada) mas que sem elas não seria a mesma coisa. The Last Guardian não é apenas um videojogo mas sim um importante pedaço de história de uma indústria cada vez mais exigente e impaciente. Uma história que conta também uma viagem de quase uma década de desenvolvimento, de dedicação, perseverança e, sobretudo, superação, com pontos fracos e pontos fortes, com erros graves e qualidades notáveis, que mostram claramente todo um complexo trabalho de evolução e de consolidação ao longo do tempo. No jogo o mesmo acontece com a criança (e por extensão com o jogador) que também precisa do seu tempo para fomentar uma relação de interação quase perfeita com Trico.

Existe um claro problema ainda mais grave com The Last Guardian que se deve ao simples facto de não ser um videojogo mainstream como parece ter sido forçado a ser. Não é um videojogo de 3 estrelas e meia ou de 84%, não é um Call of Duty, não é um Ico nem mesmo um Shadow of The Colossus. The Last Guardian é e será um videojogo único e diferente, uma fonte inesgotável de inspiração com momentos de excelência pura marcados, acima de tudo, pela independência de um árduo trabalho pautado por uma elevação artística verdadeiramente notável. Hideo Kojima ou Hidetaka Miyazaki da From Software que o digam. The Last Guardian é uma viagem no tempo, um recuo às memórias de infância claramente marcadas por diversas construções afectivas que nascem e crescem a partir da liberdade de fantasiar, brincar, explorar, aprender e aceitar. É um videojogo que conta a história de superação de uma amizade só possível fruto da imaginação. Uma viagem que demora o seu tempo a ser contada tal como o jogo demorou o seu tempo a ser criado. Mas valeu a pena esperar. The Last Guardian não será certamente um videojogo para todos. Para mim é e será.

terça-feira, dezembro 22, 2015

Pensar Videojogos: Design, Arte e Comunicação (Introdução)

O livro Pensar Videojogos: Design, Arte e Comunicação é o resultado de uma tese de doutoramento pela faculdade de Bellas-Artes de San Carlos da Universidad Politécnica de Valencia (Espanha) que, com orientação do Professor Doutor D. Francisco Berenguer, nasceu de inúmeros estímulos em finais de 2007 e prolongou-se até à sua defesa pública em Abril de 2012. Este trabalho conta também com vários anos de dedicação e investigação no qual o interesse sobre a escrita e a análise de videojogos foi crescendo, tendo acompanhado vários anos de partilha de informação, textos e experiências pessoais através deste blogue (criado em 2006). Assim, importa salientar que alguma da matéria aqui abordada partiu também de uma compilação actualizada de diversas reflexões publicadas e discutidas online que ajudaram, ao longo de todos estes anos, a enriquecer ainda mais a profundidade da análise descrita.
Este livro é pois o culminar de quase uma década de investigação dedicada aos videojogos, um marco teórico que abrange um conjunto de pontos importantes para a sua compreensão enquanto obra aberta ao design, à arte e à comunicação por parte dos criadores, assim como à multiplicidade de fruições por parte dos jogadores. Nesse sentido, o livro encontra-se dividido em quatro níveis (capítulos) e ao longo dos diversos pontos procuraremos defender os videojogos enquanto exponencial máximo de obra aberta, nas quais as suas potencialidades interactivas são um constante apelo à participação activa do jogador, através de leituras, acções, (re)criações e interpretações do seu conteúdo. O primeiro incide no conceito de Obra Aberta proposto por Umberto Eco para tecer uma análise à essência do videojogo, ao panorama da sua indústria e aos diversos tipos de jogadores como os principais fruidores. O segundo incide no design para analisar os elementos que compõem a expressiva totalidade significante dos videojogos, como as jogabilidades, as interactividades, as interfaces, os mundos, os personagens, as histórias e narrativas, de forma a perceber o seu impacto nos processos de criação e desenvolvimento. O terceiro, sobre arte, aborda o videojogo no sentido de demonstrar as múltiplas e sólidas pontes de ligação que estabelece com outras dimensões artísticas e culturais, como a Arquitectura, o Cinema, a Música, o Teatro, a Fotografia e a Pintura, seja por influência, troca ou complemento. Por último, no quarto nível sobre comunicação, é elaborada uma pequena reflexão sobre o lugar que os videojogos ocupam na cultura contemporânea, como ponto de partida para um estudo mais profundo sobre o conceito de literacia imbuído na sua génese, complementado por importantes conceitos da semiótica, como forma de demonstrar a necessidade cada vez mais emergente de introduzir no ensino áreas de estudo sobre os videojogos, que possam facilitar o desenvolvimento e a dinamização desta indústria em Portugal.
Pensar é só por si uma experiência aberta e ao juntarmos os videojogos, enquanto obra, à equação, conseguimos atingir aquilo que acreditamos ser uma mais valia: a liberdade criativa no seu sentido mais puro aliada à multiplicidade interpretativa de cada um. Como tal, importa igualmente destacar a abordagem multidisciplinar que tem como propósito torná-la relevante nas mais diversas áreas de estudos: Tecnologia, Multimédia, Design, Programação, Modelação, Animação, Arquitectura, Cinema, Música, Teatro, Fotografia, Pintura, Comunicação, Marketing, Publicidade, Educação, Psicologia, Sociologia, Filosofia, Semiótica e Antropologia. Entendemos que a profundidade teórica alcançada nos diferentes pontos, apoiam de forma decisiva a relação de proximidade que os videojogos têm vindo a fomentar com as diferentes disciplinas ao longo dos anos no que respeita à expansão e, em alguns casos, à renovação do pensamento empírico que as sustenta, assumindo claramente o objectivo de adicionar novos conhecimentos que possam facultar não só uma visão voltada para um ensino centrado no futuro como também uma reflexão final pertinente no que respeita, sobretudo, às possíveis aplicações da linguagem dos videojogos no mundo em que todos nós vivemos.
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CARITA, André (2015), Pensar Videojogos: Design, Arte e Comunicação. 1ª Edição, Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas.

quinta-feira, fevereiro 19, 2015

THE LAST OF US REMASTERED: Um ensaio sobre os confins da natureza humana












“Decisions used to be easy, huh? What time to get up? What to wear? Where to go? Now, it’s a bit different. Could you tell a friend from foe? Could you kill? Could you do worse? If a love one was infected, could you do the right thing? Could you put your life on the line for me, the way I would for you? Could you be the last of us?”

Pensar sobre os videojogos que jogamos nem sempre é fácil, pois resultam, muitas vezes, em experiências interactivas transcendentes que nos remetem para um olhar mais atento e para conversas apaixonadas e intermináveis sobre os seus mais pequenos detalhes. Este foi e ainda é o caso de The Last of Us Remastered. Originalmente publicado para a PlayStation 3 em 2013, a produtora Naughty Dog decidiu apostar na sua conversão para a PlayStation 4. Lançado em 2014, com melhores gráficos e uma fluidez mais conseguida (1080p/60fps), permitiu, nas suas palavras, lançar o jogo tal qual tinham pensado inicialmente. The Last of Us Remastered procura ser a experiência imersiva da nova geração que a produtora tanto quis criar ainda na sua fase inicial.

The Last of Us Remastered é um jogo completo. Tem acção, aventura, estratégia, tensão e drama. É um jogo que convida os jogadores a diferentes tipos de abordagem consoante a sua forma de jogar e pensar os desafios. A perspectiva é na terceira pessoa o que faz todo o sentido, pois neste jogo não interpretamos nenhum personagem. Controlamos sim personagens com personalidades bem vincadas. Não somos autores de uma história mas sim testemunhas de um desenrolar de eventos que se vão suceder sempre da mesma forma e sobre o qual não temos qualquer tipo de poder de decisão na escolha de diferentes rumos. Ao contrário de muitos videojogos, no qual os jogadores têm a possibilidade de escolher diferentes rumos da narrativa, tendo influência directa no final da história, em The Last of Us Remastered tal não acontece. A estrutura narrativa da história é estritamente linear e os produtores da Naughty Dog sempre assumiram esse aspecto como um ponto fortíssimo na experiência jogável. Ainda assim, e tal como coloca Umberto Eco, apesar de “absolutamente unívoco, a acção pode revestir-se de mil ambiguidades e abrir-se a mil possibilidades interpretativas (2009: 214).
















"Let me tell you a story. Once upon a time, I had somebody that I cared about (…) And in this world, that sort of shit's good for one thing — gettin' ya killed.”

Enquanto jogadores, somos, desde o início, vulneráveis (tal como todos os personagens que vamos conhecendo) ao que o jogo tem para nos contar e mostrar. Contudo, facilmente aceitamos esse papel passivo pois este videojogo em particular, é a demonstração clara do potencial cada vez maior que este tipo de artefacto tem quando consegue integrar a narração de uma história no aspecto único que os distingue verdadeiramente de outro tipo de media – a jogabilidade. Para muitos é o aspecto menos importante do jogo. Para mim quando se consegue aliar uma história bem narrada a uma jogabilidade bem pensada é, na maioria das vezes a diferença entre um jogo muito bom e uma obra-prima. A título de exemplo, basta pensarmos no que seria se retirássemos por completo o elemento história em jogos como Bioshock, Max Payne, Alan Wake ou os últimos da série Grand Theft Auto. O impacto não seria obviamente o mesmo. É muito devido ao elemento e ao impacto da história no jogo que The Last of Us Remastered atinge esse patamar de excelência que de outra forma muito dificilmente conseguiria almejar. Contudo, “como forma de ficção, exige um escrutínio crítico cuidado de como comunica os seus significados” pois apesar da ficção do jogo “não mudar a natureza da arte, ela apresenta-se como uma nova experiência de leitura tão surpreendente tal como já tinha acontecido com fotografia e o cinema anteriormente” (Atkins, 2003: 154-5).  
























“Goodnight, baby girl!”

Neste jogo, conhecemos Joel, o personagem principal que controlamos, que chega tarde a casa no dia do seu aniversário onde a sua filha Sarah o esperava. O jogo começa com a batida seca do relógio da sala, a marcar o ritmo pausado de mais um dia que chegava ao fim mas cuja noite se ia tornar rapidamente longa. Um estranho evento ocorre nessa noite e propaga-se rapidamente pelos diversos estados da América. O jogo começa com Sarah a acordar a meio da noite devido ao toque do telefone. Tommy, o seu tio, liga a meio da noite com urgência em falar com o irmão Joel. Algo de grave se passava e aqui o jogo começa a mudar o ritmo. Neste pequeno tutorial, o jogador controla Sarah que, inquieta, começa a explorar as diversas divisões da casa à procura do seu pai. A televisão ligada no seu quarto transmite notícias em directo e relata os eventos do que parece ser uma epidemia, um vírus que se alastra e que transforma as pessoas, mudando radicalmente o seu comportamento, tornando-as agressivas, animalescas. O medo começa a sentir-se quando as explosões e os gritos de desespero começam a ocupar o silêncio da noite. Joel, Tommy e Sarah procuram fugir e proteger-se do perigo do desconhecido que assola a cidade. Sem informação ou qualquer tipo de rumo, os acontecimentos sucedem-se em catadupa neste primeiro capítulo, servindo o propósito de mostrar ao jogador como tudo aconteceu. Interessante perceber que este capítulo ao invés de ser jogável poderia muito bem ser resumido numa cut-scene ou numa sequência introdutória que contextualizasse o tempo, o espaço e acção do jogo. Contudo, a Naughty Dog apostou num capítulo introdutório jogável, marcando aqui uma importante diferença, dando ao jogador a possibilidade de imergir na virtualidade e experienciar em tempo real o ritmo crescendo da sua ficção.


















20 anos depois, novamente um novo acordar, mas desta vez é Joel numa nova realidade. A América que conhecemos já não existe. Existe sim diferentes zonas de quarentena que mantêm os cidadãos não infectados dentro dos limites físicos do espaço, havendo uma nova ordem que procura manter a estabilidade necessária para um funcionamento em comunidade. Ao nível narrativo, surge aqui uma elipse que nos faz avançar propositadamente no tempo mantendo as perguntas em aberto. O que aconteceu verdadeiramente? Joel é agora um contrabandista que, juntamente com Tess (supostamente sua parceira) envolve-se em pequenas missões de troca de favores algo dúbios. A explicação aqui também não é clara ao contrário dos sinais do tempo que marcam a expressão carrancuda e fechada no rosto de Joel.


































“Guess what, we're shitty people Joel it's been that way for a long time...”

Uma das missões passa por levar uma rapariga de 14 anos em segurança para um outro ponto da cidade. É aqui que conhecemos Ellie e tudo muda. A história passa a centrar-se numa relação em torno de Joel e Ellie. O que começa por ter como base um termo de compromisso e responsabilidade acaba por se desenvolver em algo mais com a progressão do jogo. Embarcamos numa longa viagem durante o período de um ano por vários estados da América, onde temos a possibilidade de testemunhar uma relação de confiança, amizade e amor que vai crescendo ao longo do jogo. Ellie e Joel são duas personagens com personalidades completamente distintas mas que são “obrigadas” a conviver e a aprender a encontrar um ponto de equilíbrio entre os dois. Ellie, vai-se tornando mais selvagem, com instintos de sobrevivência mais apurados, ao mesmo tempo que vai tornando Joel mais vulnerável a sentimentos e emoções, mais preocupado com as consequências das suas acções, mais consciente, em suma, mais humano. É nesta relação que se torna “necessário pensar a paz como sinal, não duma mediação entre a hostilidade e o amor, mas como lugar do encontro, onde a bondade é a primeira linguagem. A liberdade só pode ganhar sentido dentro deste estrito sentido da fraternidade e da responsabilidade para com o outro, de um pelo outro” (Veríssimo, 2004: 36).


















Uma palavra de apreço ao magnífico trabalho de representação por parte de Troy Baker no papel de Joel e, sobretudo, Ashley Johnson no papel de Ellie, conseguindo preencher a construção de uma personagem virtual conferindo-lhe a alusão de sentimentos reais. Aqui, entra também o notável trabalho de Gustavo Santaolalla na criação da banda sonora do jogo. A sonoridade acústica no dedilhado da guitarra proclama a verdadeira essência de cada uma das notas. É possível ouvirmos o som do deslizar dos dedos no braço da guitarra entre notas, conferindo à melodia um cunho pessoal diferente, mais próximo, mais autêntico. São estes sons que transmitem uma certa dose de magia às imagéticas do jogo complementando, muitas vezes, inúmeras sequências, explorando a polissemia das imagens no que respeita às suas carências expressivas. “Se a música é considerada uma linguagem, é porque a modulação segue passo a passo as unidades verbais de sentido, por uma espécie de contaminação e, num certo sentido, que não deixa de ser metafórico, a modulação pode ser dita uma linguagem universal de sensações” (Gil, 2010: 32). A música de Santaolalla dá alma à virtualidade do jogo, cria constantes pontes de ligação que ajudam a transpor uma maior profundidade à nossa interpretação pessoal.

















“You're treading on some mighty thin ice here…”

The Last of Us Remastered é enorme, com muitos momentos de acção e outros de introspecção. A Naughty Dog soube como trabalhar da melhor forma os diferentes ritmos do jogo, convidando constantemente os jogadores a explorarem a seu bel prazer os pequenos pormenores que a narrativa oferece. O mundo virtual está repleto de informação e manuscritos que procuram complementar algumas falhas da história e dar aos jogadores pistas e relatos sobre as duas décadas que se sucederam após o aparecimento do vírus que conduziu à destruição e à quase dissipação da humanidade. Nestes momentos de maior introspecção, Joel, mais conservador e preocupado, e Ellie, mais curiosa e irrequieta, interagem entre si de forma natural, começando muitas vezes com conversas à medida que vamos explorando com eles os cenários. É aqui que percebemos que estamos a assistir a uma relação de duas gerações que nasceram e cresceram em duas realidades completamente distintas. Uma que perdeu tudo o que tinha e conhecia e que teve que aprender a viver numa nova realidade pós epidemia e uma outra que nasceu e cresceu nessa nova realidade e que não sabe o que é ter vivido num tempo de rotinas diárias. O jogo dá-nos inúmeras oportunidades e tempo para podermos desbravar alguns factos e curiosidades que surgem nos diferentes tipos de interacção entre Joel e Ellie.




































A estética do jogo é incrível. As suas imagens ajudam a definir claramente um modo de ver mais atento, mais pausado. Não só dão maior profundidade descritiva como também contam micro histórias que complementam a história principal do jogo. “Comunicar pela imagem (mais do que pela linguagem) vai necessariamente estimular no espectador [neste caso jogador] um tipo de expectativa específico e diverso daquele que uma mensagem verbal estimula” (Joly, 2008: 68). Olhar e interpretar as imagens que vamos desvendando no jogo, acaba por ter um maior impacte a longo prazo, mesmo depois de o terminarmos. “O que importa compreender não é a situação inicial do discurso, mas o que aponta para um mundo possível, graças à referência não ostensiva do texto” (Ricoeur, 2013: 122). As imagens, neste jogo, superiorizam-se ao texto, às legendas, aos diálogos. São as imagens que nos fazem prender o olhar. A sua abertura permanente, estimula a criatividade do discurso interpretativo. São essas imagens que guardamos, que ficam na nossa memória. 





































Os cenários do jogo mostram os sinais que ainda restam de uma civilização “engolida” literalmente pela natureza, numa espécie de desordem ecológica, na qual é possível verificar os destroços dos edifícios repletos de vegetação. Existe nesta simbiose uma estranha beleza que nos remete para uma alusão metafórica no que respeita ao confronto interno dos aspectos racionais e emocionais que estão intrinsecamente ligados tanto ao nosso lado mais humano como selvagem. “Passamos de uma ordem humanística a uma ordem cósmica e nesta, o homem é um elemento e provavelmente o elemento menos simbiótico, menos harmonioso, porque a sua acção conflitua demasiado com o meio que o rodeia” (Veríssimo, 2004: 17) pois está na natureza do ser humano uma inquietante tendência de destruir em pouco tempo aquilo que demorou anos a criar. Uma célebre afirmação de Jonas Edward Salk (1914-1995), médico norte americano, vem no seguimento desta ideia: “Se todos os insectos desaparecessem da Terra, dentro de 50 anos toda a vida na Terra acabaria. Se todos os seres humanos desaparecessem da Terra, dentro de 50 anos todas as formas de vida floresceriam.”

































“You know, as bad as those things are, at least they're predictable. It's the normal people that scare me.”

Existem dois tipos de inimigos que representam ameaças no jogo. Os infectados e os não infectados. Os infectados, um pouco à semelhança do que aconteceu noutros videojogos da saga Silent Hill por exemplo, apresentam uma clara alusão às figuras deformadas nas pinturas de Francis Bacon, apresentando variações no seu comportamento, acções, fisionomias, resistência e força. Os não infectados, sobreviventes como Joel e Ellie, deambulam no mundo virtual com diferentes motivações. Pessoas imprevisíveis que não olham a meios para atingir os seus fins, que não possuem valores morais ou qualquer tipo de sensibilidade humana, que atacam para se defender e que matam para sobreviver mais um dia neste mundo perigoso, cruel e cada vez mais desumano. Aqui, mais uma vez, uma crítica clara à podridão de uma sociedade sem rumo nem regras que demonstra a imprevisibilidade do ser humano quando colocado em situações extremas. Um aspecto curioso do jogo deve-se ao facto de nunca vermos infectados a atacarem outros infectados, mas lidamos em quase todos os capítulos com confrontos entre pessoas não infectadas. Nos últimos capítulos do jogo as grandes ameaças são mesmo os humanos.























"That was plan A, B, C all the way to f******* Z!"

As decisões, em The Last of Us Remastered, nunca são fáceis. As munições são escassas e os items que apanhamos no mundo virtual do jogo podem ser combinados para a criação de diferentes objectos. Contudo, e dependendo do grau de dificuldade em que jogamos, é preciso pensarmos que tipo de objecto queremos criar consoante as necessidades a curto prazo. Muitas vezes, o jogo coloca-nos propositamente em situações nas quais temos que ser rápidos a pensar se queremos criar, por exemplo, um health kit por termos pouca energia, ou criar um cocktail molotov para arremessar aos inimigos que se encontram à nossa frente. Podemos criar um health kit e tentar eliminar os inimigos silenciosamente um a um, ou criar um cocktail molotov e tentar atirá-lo de forma a atingir todos os inimigos que se encontram na mesma divisão que nós. O pensamento estratégico depende do jogador. Numa outra situação, Joel tem uma bala na pistola que pode conservar ou disparar a uma pessoa recentemente infectada pelo vírus que se encontra presa nos destroços e que pede desesperadamente a Joel para o matar. Aqui o jogo entra em confronto directo com os valores emocionais do jogador, que acabam por ter influência na personalidade de Joel. Colocamos a nossa própria vida em risco para salvar uma outra? Somos humanos ou selvagens? Todas as decisões que tomamos não mudam o desenrolar da história mas têm um impacto radical na experiência que nós jogadores conseguimos retirar do jogo.


























“To the edge of the universe and back, endure and survive...”

No decorrer de um ano (tempo do jogo), passamos pelas quatro diferentes estações que "emprestam" aos cenários uma variedade assinalável de distintas condições atmosféricas. No inverno, por exemplo, os cenários estão repletos de neve e torna-se mais difícil ver o que se encontra à nossa frente. Esta variável poderá parecer à partida uma desvantagem mas também introduz uma vantagem pois os inimigos têm dificuldade em detectar a nossa presença, dando aos jogadores a oportunidade de delinearem estratégias defensivas e/ou ofensivas de sucesso em relação aos confrontos que vão surgindo. É precisamente durante o inverno que controlamos Ellie. Esta mudança é temporária mas permite aos jogadores ter uma outra perspectiva em relação a determinadas interacções no mundo virtual do jogo. A própria fisionomia de Ellie é diferente da de Joel. Por um lado tem a desvantagem de não ter tanta força ou aptidões, mas por outro, tem a vantagem do ser mais pequena e ágil o que revela ser uma mais valia em determinadas partes do nível, sobretudo, para evitar confrontos desnecessários.

















“I guess no matter how hard you try, you can’t escape your past.”

Na parte do final do último nível, e sem querer estragar a surpresa da descoberta, foi-me possível experienciar uma espécie de dejá vu que me remeteu novamente, ainda que por breves momentos, para o primeiro capítulo onde tudo começa e se altera na vida de Joel. Uma sequência que procura ao mesmo tempo fechar um ciclo na vida de Joel e abrir perspectivas de que talvez daqui para a frente as coisas possam ser realmente diferentes e que o final talvez não seja assim tão mau como poderia à partida parecer. A beleza da poética presente no discurso da parte final do jogo não requer de nós, fruidores da obra, ter uma certeza clara sobre a sua dissolução. “A natureza deste discurso, a sua possibilidade de ser entendido de múltiplas maneiras e de estimular soluções diferentes e complementares é o que podemos definir como abertura de uma obra narrativa: na recusa do enredo realiza-se o reconhecimento do facto de que o mundo é um nó de possibilidades e de que a obra de arte deve reproduzir esta característica” (Eco, 2009: 214).












“Everyone I have cared for has either died, or left me. Everyone—fucking except for you! So don't tell me I would be safer with somebody else, because the truth is, I would just be more scared.”

Assistimos assim a uma redenção improvável só possível e desculpável quando testemunhamos uma protecção desmedida e afecto quase paternal que parecia ter sido esquecido por Joel. Um afecto que foi sendo construído a um ritmo pausado ao longo de todo o jogo e que culminou numa sequência final de revolta e de desespero em busca da sua salvação pessoal – a própria Ellie. As decisões nunca são fáceis e aquilo a que assistimos e acabamos invariavelmente por apoiar é a decisão final de Joel, que ao parecer revelar egoísmo só demonstra que nunca deixou de sentir, nunca deixou de ser humano. Atingiu, com Ellie, o tal ponto de equilíbrio necessário para uma maior estabilidade emocional, encontrando nela a razão primordial para contornar os problemas e dificuldades e dar sentido à sua própria vida. “O ser si mesmo é (...) amar o próximo. O amor é assim uma resposta a um imperativo, o não esperar um agradecimento” (Veríssimo, 2004: 46).














“I've struggled a long time with survivin', but no matter what you have to find something to fight for.”

Apelidado por muitos críticos e jornalistas como o Citizen Kane dos videojogos, The Last of Us é, sem dúvida, uma obra que terá lugar cativo na lista dos melhores títulos de sempre da indústria. A força da obra reside, tal como em Citizen Kane, na profundidade imagética que enaltece os pequenos pormenores que chama a atenção sobre si mesma e que dão sentido ao todo da experiência (Schneider, 2003: 172). Em suma, é uma experiência cinematográfica jogável  que conta uma história de amor, perda e esperança. É uma história dura, crua e feia que se desenrola numa América destruída pelo caos, pelo medo e desconfiança que se foi fomentando ao longo de duas décadas. É uma história sobre sobrevivência e sobre os valores morais que nos distingue enquanto humanos e que tanto procuramos prezar ao longo da nossa vida. É uma história que evita dar respostas concretas, mas sim fomentar constantes e pertinentes perguntas sobre a importância que damos às nossas acções e, principalmente, sobre as consequências que delas advêm.















“Let’s just wait it out, y’know, we can be all poetic and just lose our minds together.”

É uma história que nos relata um confronto de gerações completamente distintas, mas que se vão conhecendo e criando uma relação de afecto e protecção, que cresce, amadurece e perdura até ao final da experiência. É um confronto de relações humanas que nos faz acreditar ser possível saber lidar, mesmo em situações de extremo absoluto, com o valor da vida, dos sentimentos e da memória, essa capacidade que nos é intrínseca de armazenarmos as nossas vivências, experiências, cultura – aquilo que verdadeiramente distingue os humanos dos animais. É, sobretudo, um ensaio sobre os confins da natureza humana que julgamos (des)conhecer.


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Referências bibliográficas:
ATKINS, Barry (2003), More Than a Game – The Computer Game as Fictional Form, Manchester, New York: Manchester University Press.
ECO, Umberto (2009[1962]), Obra Aberta, 2ª Edição, Lisboa: DIFEL. 
GIL, José (2010), A Arte Como Linguagem – A Última Lição, Lisboa: Relógio D’Água Editores.
JOLY, Martine (2008[1994]), Introdução à Análise da Imagem, Lisboa: Edições 70.
RICOEUR, Paul (2013), Teoria da Interpretação – O Discurso e o Excesso de Significação, Lisboa: Edições 70.
SCHNEIDER, Steven Jay, ed. (2005), 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, 2ª Edição, Lisboa: Dinalivro.
VERÍSSIMO, André (2004), A Crise do Homem – Uma Ética do Tempo Comum, Porto: Estratégias Criativas.