quarta-feira, agosto 21, 2013

Brothers: A Tale of Two Sons - Relatos de uma viagem no tempo


Brothers: A Tale of Two Sons é uma viagem aos recantos do tempo que vivemos e que guardamos com carinho na nossa memória. Uma viagem à ilusão da inocência dos tempos da nossa infância, que nos lembra constantemente da mais pura magia que é ser criança. Brothers: A Tale of Two Sons fez-me sentir criança novamente ao imergir num mundo de fantasia. Despoletou em mim um sentimento de nostalgia, recordando os tempos em que assistia à série de animação O Raio Azul (transmitida na RTP2 no Verão de 1991). Senti-me como o personagem Cláudio Santiago transportado para dentro dos contos do seu pai escritor, interagindo e criando relações afectivas com outros personagens fictícios criados com o propósito de fazer sentir as emoções reais. São poucos os videojogos que o conseguem de uma forma tão especial. Brothers: A Tale of Two Sons tem essa intenção desde o seu início, para depois nos relembrar que é apenas um videojogo que nos conta uma história de dois irmãos numa viagem em busca do remédio para o seu pai doente. O objectivo serve apenas o propósito de contextualizar a motivação dos dois irmãos na superação dos desafios que vão surgindo à medida que exploram a fantasia dos diversos cenários que atravessam.
Brothers: A Tale of Two Sons começa com um grande plano do irmão mais novo de joelhos perante a campa da sua mãe. Um trágico acidente de barco separou-os fisicamente. O afogamento da mãe perante as tentativas infrutíferas de salvação por parte de uma pequena criança aterrorizada, deixou marcas e traumas difíceis de superar. Esta dura sequência introdutória explica a razão do pequeno irmão ter medo da água. E isso acaba por ter influência na própria jogabilidade e interacção entre os dois irmãos em determinadas partes da aventura. Os dois irmãos ajudam-se e protegem-se da mesma forma tão dedicada como quando brincam. A inocência, paz, amor e sentido de responsabilidade vai crescendo com a viagem. Isso é notório principalmente no irmão mais novo. A personalidade, tanto meiga como brincalhona, reforça a infantilidade inicial que vai amadurecendo consoante o esforço em superar os mais diversos perigos.
A homogeneidade da união que fortalece a relação entre os dois vai sendo posta em prova perante a heterogeneidade das suas características físicas e emocionais. E é precisamente essa a elegância da mecânica que define a jogabilidade e a forma como experienciamos a aventura. A homogeneidade da união entre os dois irmãos é transportada para o próprio gamepad na forma como os controlamos simultaneamente com os dois botões analógicos. A adaptação requer algum treino mas o ritmo pausado do jogo permite ao jogador o tempo de familiarização necessário para se habituar à ideia de uma experiência multiplayer transformada em solo. Essa jogabilidade é explorada de forma delicada em diversos puzzles que, embora simples, obrigam a um esforço de coordenação redobrado na forma como se tenta não confundir o cérebro perante constantes trocas posicionais. Isto porque o botão analógico esquerdo controla o irmão mais velho e o direito o irmão mais novo e em diversos puzzles ocorre uma troca posicional dos irmãos no ecrã, sendo necessário, por vezes, pensar por breves segundos antes de se pressionar qualquer botão.
Brothers: A Tale of Two Sons é um videojogo que gira em torno da união e do reencontro. São muitos os exemplos que reforçam essa ideia ao longo do jogo, tais como a ligação afectiva do irmão mais novo com o espírito da sua mãe, o pássaro que podemos soltar da gaiola, a forma como salvamos um homem desesperado que se tenta enforcar após a morte da sua família, a ajuda que prestamos a um casal de ogres, as crias bebés que conduzimos à sua mãe tartaruga aflita ou a mulher que libertamos de uma tribo ameaçadora. São várias as acções que podemos fazer como forma de complementar as diferentes personalidades dos dois irmãos. O próprio jogo convida a essa descoberta para depois a fomentar com uma maior profundidade na relação afectiva que nós jogadores vamos alimentando entre os dois irmãos.
A forma como se interage com as diferentes situações ou personagens que o mundo apresenta é fulcral sob o ponto de vista emotivo, dando à experiência total um final ainda mais forte. Um aspecto interessante deve-se ao facto de não se conseguir perceber nada do que os personagens dizem. O incompreensível dialecto apenas é parcialmente descodificado com os gestos que ajudam a clarificar o seu conteúdo. O jogador, enquanto espectador, tem uma abertura interpretativa maior perante estes vazios deixados pelos produtores de forma propositada no guião.
Variado, diferente, inovador, são apenas algumas das ideias que ficam depois de se jogar este videojogo. Apesar da sua curta durabilidade, toda a experiência interactiva é compensada por muitos momentos estimulantes e outros tantos reconfortantes. No final do artigo "Yes, But is it a Game?" (in Gamers: Writers Artists and Programmers on the Pleasures of Pixels, ed. Shanna Compton, Brooklyn: Soft Skull Press, 2004), Nic Kelman apresenta um “Video Game Arts Manifesto” e faz um apelo ao envolvimento sentimental nos videojogos, desafiando todos os produtores a criarem jogos que façam os jogadores chorar. Kelman defende que no dia em que um videojogo conseguir tal proeza talvez possa vir a ser considerado arte.
Cada vez mais me convenço que talvez o grande desafio não passe tanto pelos produtores de videojogos mas sim pelos jogadores que os experienciam. Não devemos forçar um videojogo a ser arte mas podemos e devemos fazer de nós jogadores uma peça fundamental nesse esforço artístico. Embora subjectivo é um esforço que está ao nosso alcance e que vale a pena fazer principalmente quando gostamos dos videojogos que jogamos.


terça-feira, agosto 06, 2013

A interessante experiência de Into the Dead


Segundo as palavras de Umberto Eco, “cada fruição é uma interpretação e uma execução, pois em cada fruição a obra revive numa perspectiva original” (2009: 68). E os videojogos, como obras abertas que são, estabelecem e asseguram com os jogadores diversos processos de negociação, motivando-os a assumir um importante papel de agentes criativos no interior de um discurso (Nitsche, 2008: 212). “O prazer de uma experiência reside na sua capacidade de transportar o participante para uma ilusão de realidade simulada” de maneira a que “o jogador acredite ser parte integrante de um mundo imaginário” (Salen e Zimmerman, 2004: 450). Partindo das palavras acima citadas, torna-se imperativo mencionar Into the Dead (PikPok, 2012), uma recente e surpreendente descoberta no abundante espólio de artefactos digitais que proliferam na App Store. Into the Dead não deve ser abordado como apenas mais um jogo de zombies no meio de tantos outros, mas sim como uma experiência diferente e algo inovadora dentro dos limites que definem o género survival horror. Pensado, sobretudo, para sessões curtas em dispositivos móveis, a acção, sempre na primeira pessoa, é intensa e perturbadora. O seu aspecto visual monocromático define um ambiente noir desconfortável, denso, frio, silencioso e inquietante. Contextualiza a tensão através da complementaridade de um discurso inquietante digno das obras cinematográficas de George Romero às reminiscências do expressionismo cinematográfico alemão da década [19]20, tornando a experiência jogável ainda mais aterradora. 



Na obra de Dave Morris e Leo Hartas, o designer Chris Bateman refere que “o gore não assusta (...), não evoca medo” acrescentando que “é fácil inserir o gore nos videojogos, mas é muito mais impressionante quando o sucesso de um determinado videojogo é conseguido, fundamentalmente, através da evocação constante de atmosferas de terror” (2004: 146). Tudo se passa no interior do jogo, apresentando no ecrã um incentivo traduzido num convite aberto a profundas absorções. Geoff King e Tanya Krzywinska referem que, de uma forma geral, “os ambientes mais detalhados e reactivos aumentam o potencial de imersão no mundo virtual” (2006: 144). Atinge-se um elevado grau de imersão quando um conjunto de pixels apresentados no ecrã provoca momentos de diversão, emoção, alegria, adrenalina, pânico, terror ou medo. 

Into the Dead consegue em poucos minutos essa imersão que não se esgota na jogabilidade que, apesar de curta, faz com que a adrenalina e a tensão perdurem tempo suficiente para nos fazer voltar para mais sessões. O objectivo do jogo é sobreviver o maior tempo possível no meio de uma imensa área repleta de zombies. Uma breve sequência introdutória apresenta-nos o campo periférico do personagem que controlamos que, depois de um acidente de helicóptero, rapidamente procura fugir às inúmeras ameaças de morte. O personagem começa a correr sem parar e, controlado pelo jogador, apenas se pode desviar para esquerda ou para a direita para evitar os vários zombies que vão surgindo cada vez em maior número bem como os diversos obstáculos que vão variando consoante os diferentes cenários que se atravessam. A constante turbulência visual resultante dos rápidos movimentos corporais do personagem, obriga o jogador a um esforço de concentração e coordenação bem mais activo. Um pouco à semelhança de Mirror's Edge (EA Digital Illusions CE, 2008) - que, nas palavras de Thompson foi "o primeiro videojogo a infiltrar a nossa propriocepção" - mais do que “graficamente realista” Into the Dead é neurologicamente realista devido à sensação de motricidade ser tão vigorosa (Thompson, 2008). 



Quando na posse de uma arma apenas um toque com o dedo no centro do ecrã é suficiente para disparar. Contudo, e um dos aspectos mais positivos da experiência, consiste no facto das armas e munições serem extremamente escassas e surgirem apenas em certos pontos do cenário, o que acaba por reforçar ainda mais a nossa vulnerabilidade e instinto de sobrevivência numa situação amplamente adversa e constantemente ameaçadora. É interessante verificar como as pequenas escolhas da trajectória que efectuamos em muito definem a nossa resistência e lucidez enquanto jogadores. Por vezes, as armas surgem em áreas povoadas de zombies, tornando mais arriscada qualquer tentativa de as apanhar. Será preferível correr o risco de apanhar a arma quando podemos morrer ou simplesmente ignorar e caminhar mais alguns metros em segurança? 

Embora subjectivo à nossa navegação pelos diversos cenários, o jogo dá-nos constantemente esse poder de escolhas, da mesma forma que quando apanhamos um revólver com apenas seis tiros temos que saber geri-los para os usar em situações de maior aperto. Existe também outro tipo de opções que surgem antes de iniciarmos cada jogo, como a possibilidade de ter mais munições, mais armas, entre outros. Existe uma opção interessante que consiste em começar o jogo na companhia de um cão que nos ajuda, atacando zombies e abrindo caminho pelos cenários. Esta opção é curiosa no sentido em que reforça uma ligação quase que sentimental perante a solidão que nos assola quando somos os únicos seres a tentar manter-se vivos.

________________________

Bibliografia consultada: 
ECO, Umberto (2009), Obra Aberta, Lisboa: Difel. 
MORRIS, Dave e HARTAS, Leo (2004), The Art of Game Worlds, Cambridge: The Ilex Press. 
NITSCHE, Michael (2008), Video Game Spaces – Image, Play and Structure in 3D Worlds, Cambridge, Massachusetts: The MIT Press. 
SALEN, Katie; ZIMMERMAN, Eric (2004), Rules of Play: Game Design Fundamentals, Cambridge, Massachusetts: The MIT Press. 
THOMPSON, Clive (2008), “Victory in Vomit: The Sickening Secret of Mirror’s Edge”, Wired – Games Without Frontiers.