terça-feira, janeiro 06, 2009

o jogo do ano!

Para além de qualquer questão técnica relativamente a um videojogo, existe sempre o seu potencial artístico que procura despertar um novo olhar, num apelo incessante aos nossos sentidos, remetendo-nos para a contemplação. A subjectividade da Arte encontra-se num filme que vemos, num quadro que admiramos, num livro que lemos, num videojogo que jogamos. Toca-nos e não se perde. Permanece e não se esgota.

O autor Roland Barthes na sua obra A Câmara Clara faz a mesma analogia em relação à Fotografia. Para Barthes "a palavra mais adequada para designar a atracção que certas fotografias exercem (...) era aventura. Uma determinada foto acontece-me, uma outra não" (1). Nesse sentido, e apesar de lançamentos de títulos como Grand Theft Auto IV, Gears of War 2, Metal Gear Solid 4, Fable II, Guitar Hero: World Tour entre muitos outros (grande maioria sequelas), o destaque do ano transacto vai para o jogo que ofereceu uma experiência inovadora, única e diferente das restantes: Mirror's Edge - uma aposta de risco da produtora Digital Illusions na criação de uma obra com inúmeras fontes de inspiração relativas às mais diversas áreas artísticas e conceptuais.



A acção de Mirror's Edge é contextualizada numa cidade vigiada por um feroz sistema ditatorial que controla todos os dados e informações circundantes, exercendo uma forte política de inquisição. Transportado para este cenário, o jogador terá que controlar Faith (fé?), uma estafeta que procura contrariar o fluxo ditatorial implantado na cidade através do Parkour, uma actividade desportiva ainda em ascenção permitindo [em Mirror's Edge] explorar e abordar os espaços urbanos, transformando possíveis obstáculos em oportunidades de fuga.

A sua jogabilidade é claramente inspirada em Breakdown (Namco, 2004), onde a ideia do jogador ver através dos olhos do personagem é levada ao extremo. Segundo Bob Bates "os jogos com perspectiva first-person tendem a ser mais imersivos (...) havendo uma maior sensação se presença 'no mundo', uma vez que o jogador vê e ouve juntamente com o seu personagem" (2). Mirror's Edge, procura enaltecer um maior realismo através da representação das turbulências visuais derivadas às rápidas movimentações de Faith, num ritmo, por vezes, frenético que obriga o jogador a um maior esforço de concentração e coordenação.








Just sunshine And blue sky That's just how it goes For living here

A sua dimensão pragmática transporta o jogador para um panorama futurista a lembrar obras cinematográficas como Johnny Mnemonic (1995), The Matrix (1999) ou Equilibrium (2002) do realizador Kurt Wimmer, onde mais do que uma prisão física é reforçada uma prisão emocional que nos direcciona para uma perspectiva de um vazio frágil e frio do ser Humano manipulado e perseguido.
"O vazio - a não cor - constituiu um factor essencial do sistema. Se o vazio domina a composição, qualquer das três cores primárias puras (o azul, o vermelho e o amarelo), separadas por grossos traços negros, verticais ou horizontais, pode assumir um indiscutível papel de protagonista" (3).

A sua simplicidade estética traduzida pela dicotomia ausência/presença de cores, poderá sugerir constantes jogos psicológicos em relação às inúmeras dualidades do Homem: bom/mau, rico/pobre, alegre/triste, crente/não-crente, perseguidor/perseguido. Este conjunto de oposições binárias é essencial na forma como enfatiza a compreensão da linguagem através de "gerador de significados" onde "o significado de 'escuridão' é relativo ao significado de 'luz'" (4).
Os seus fortes contrastes alteram-se dinamicamente ao longo dos vários níveis onde o espectro de cores primárias eleva a sua presença através de simples formas geométricas pautadas pelo equilíbrio das suas linhas horizontais e/ou prependiculares (mais uma vez um jogo de contrastes!). A sua arte abstracta geométrica claramente inspirada nas composições de Piet Mondrian (1872-1944) elevam as dimensões artísticas de Mirror's Edge a um outro patamar distante e não compatível com os restantes títulos.








No shadows Just red lights Now I'm here to rescue you

A protagonista Faith é o complemento perfeito no interior do sistema de cores apresentado. O seu vestuário (preto e branco) funciona como ausência de cor enaltecendo o vermelho das sapatilhas e da luva da mão direita como elementos interactivos nos seus vários percursos urbanos.
Todos os caminhos que o jogador deve seguir encontram-se marcados a vermelho, funcionando claramente como índices de perigo/obsctáculo/fuga denotando uma força imagética no interior da ampla paisagem urbana, palco dos conflitos e acções ao longo dos vários níveis. Este percurso indicial adopta parte da categorização dos signos do modelo de categorização dos signos apresentado por Charles S. Peirce (1983-1914) na forma como cria uma "ligação directa" (5) entre os vários significantes espalhados no ecrã do jogo com o significado (progressão) da respectiva jogabilidade.








I will move fast I will move slow Take me where I have to go

Em relação à sua sonoplastia, o principal foco é a música e a força com que assegura a totalidade à qual pertence, com uma variação de ritmos que complementa na perfeição as acções no decorrer dos níveis. Das fases de exploração pausada do cenário às fases de intensas fugas às forças policiais, os diferentes ritmos das músicas fortalecem a variação constante de abordagens necessárias ao jogo. A faixa "Still Alive" de Lisa Miskovsky torna possível a difícil tarefa de reunir e transformar toda a essência e filosofia por detrás de Mirror's Edge numa reflexão metafórica em relação aos mitos resultantes das ténues fronteiras que limitam e separam/aproximam as dicotomias diferenciais presentes na nossa evolução enquanto sociedade, cultura e vivências.






Mirror's Edge não é uma obra perfeita, nem uma obra pensada para as grandes massas. A sua essência prima pelo carácter inovador e pela unidade sígnica amplamente complexa a vários níveis de desconstruções semióticas, proporcionando uma experiência diferente através de uma perspectiva first-person pensada para novas abordagens. Mirror's Edge é, sem dúvida, um prefácio videojogável de um projecto que espera por futuros capítulos com fortes alicerces que permitam aprofundar as pontes de ligação multidisciplinares já criadas, para um debate aberto, crítico, artístico e, sobretudo, maduro. Mirror's Edge acontece-me!





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(1) BARTHES, Roland (2001), A Câmara Clara, Lisboa, Edições 70, p. 37.
(2) BATES, Bob (2004), Game Design - Second Edition, Boston, Thomson Course Technology PTR, p.39.
(3) PIJOAN, J. (1972), História da Arte - Volume 9, Barcelona, Salvat Editores, p. 223
(4) CHANDLER, Daniel (2007), Semiotics The Basics, New York, Routledge, p. 91.
(5) ibid., p. 37.