segunda-feira, fevereiro 01, 2010

a permeabilidade dos videojogos às artes

Recentemente li um interessante artigo de Brett Martin intitulado "Should Videogames be Viewed as Art?". Interessante por me ter deixado esclarecido sobre determinadas ideias e, ao mesmo tempo, confuso em relação a outras, pois fez-me pensar a arte e como sublinha Denis Huisman no seu livro A Estética, "como pensar a arte quando pensar é um género de arte?" (2005: 68). Para Martin, Rez (United Game Artists, 2001) "foi um importante passo para os videojogos se tornarem arte ou poderem serem vistos como tal" (2007: 207). Neste ponto a concordância é absoluta, tendo já escrito uma opinião pessoal sobre Rez no artigo intitulado Rezpect Art. Por outro lado Brett Martin refere que quando os criadores de videojogos procuram imitar outras artes [referindo-se especificamente ao cinema], incorporando na totalidade das suas obras várias inspirações, técnicas ou conteúdos para adquirir maior força, mais distantes ficam de se tornarem arte (2007: 206). Com esta observação, Brett Martin procura alertar para o risco dos videojogos perderem a sua identidade própria devido à excessiva ligação a outras artes. Contudo a identidade dos videojogos só estaria em causa se a jogabilidade, o principal elemento que os distingue de outras formas de arte, fosse remetido para segundo plano.





Desde a tese apresentada em Novembro de 2006 intitulada Cinegames - Influências e diferentes adaptações que procuro defender o uso recorrente de técnicas e inspirações de outras artes transfiguradas no formato digital dos videojogos. A própria natureza da arte já demonstrou ter que ser permanentemente evolutiva e essa evolução é muitas vezes conseguida através de evidentes correlações entre diferentes campos artísticos. Rez com obras abstractas de Wassily Kandinsky; ICO (Team ICO, 2001) com as pinturas de Giorgio de Chirico, o romance Gormenghast de Mervyn Peake e os elaborados e detalhados rascunhos das Prisões Imaginárias de Giovanni Battista Piranesi (BYRON et al., 2006: 112-5); Mirror's Edge (Digital Illusion, 2008) com as obras de Piet Mondrian (abordagem comparativa feita anteriormente
aqui); Silent Hill 2 (Konami, 2001) com as gravuras das deformações de Francis Bacon (BERENS e HOWARD, 2008: 181), a insanidade bizarra de The Lost Highway ou Mulholland Dr. de David Lynch explorada principalmente nas múltiplas dicotomias sonho/pesadelo, fantasia/realidade, Mary/Maria reforçadas pelas dúvidas de James; Another World (Eric Chahi, 1991) com a profundidade de campo idêntica à revelada em Citizen Kane; XIII (Ubisoft Paris, 2003) com a estética e processos de leitura de banda desenhada ou Metal Gear Solid (Konami, 1998) e Max Payne (Remedy Entertainment, 2001) com determinadas particularidades cinematográficias. Todos estes títulos teriam o mesmo sucesso sem as mencionadas inspirações, ligações ou correlações? Dificilmente!















Ainda assim, existem várias opiniões contraditórias que defendem a abolição de determinadas correlações, sendo as cutscenes o elemento mais discutido. Dan Reisinger publicou um artigo intitulado
"Why video game cutscenes should be elimited" (2008) onde salienta a sua experiência com Bioshock, referindo que as cutscenes estragam completamente a experiência imersiva pelas sucessivas interrupções da jogabilidade. Contudo o uso deste tipo de elementos não deve ser excessivo mas sim contextualizado, servindo um propósito muito específico. Another World é, mais uma vez, um sublime exemplo de como as cut-scenes devem ser utilizadas num videojogo, quando acrescentam uma vertente emocional que de outra forma seria difícil de alcançar. A cutscene no momento em que James descobre a verdade após visionamento da cassete no quarto 312 do hotel de Silent Hill 2 ou, mais recentemente, a do reencontro de Dom e Maria em Gears of War 2 (Epic Games, 2008), ilustram a importância da sua utilização através de complementos essenciais como a variação e escala de planos, os movimentos de câmara e a montagem narrativa que reforçam conotações ao nível da tensão e da dramatização.





Um dos últimos títulos que me permitiu memorizar excelentes experiências foi Braid (Number None Inc, 2008). Para além da sua jogabilidade criativa com constantes variações das suas mecânicas, Braid revela também uma forte ligação à pintura surrealista de René Magritte, o que proporcionou um abrupto estado de euforia visual. Neste título, os jogadores são surpreendidos pela beleza gráfica de mundos de fantasia como característica base em muito associada aos videojogos. David Hellman refere num artigo da autoria de Alex Wiltshire que a sua intenção era que Braid "parecesse uma pintura viva, irregular e ambígua" (2009: 54), aspectos esses que em muito caracterizam não só o surrealismo em geral como as obras de René Magritte em particular. Walter Hess define o Surrealismo como uma "auto-emoção psíquica pura, através da qual se procura exprimir oralmente, por escrito ou de qualquer outra maneira o verdadeiro funcionamento da imaginação" (2001: 228). E é precisamente neste sentido que os videojogos devem caminhar utilizando a tecnologia moderna não com o intuito de procurar recriar pormenorizadamente a realidade mas sim de visualizar a imaginação dos seus criadores (WILTSHIRE, 2009: 58).











Esta permeabilidade dos videojogos às artes cada vez me ensina mais. Não apenas a jogá-los mas a pensá-los, a aprofundar o meu conhecimento sobre disciplinas que poucas vezes se cruzaram com a minha formação académica. Ensina-me a reter e a analisar um conjunto de abordagens comparativas, a perceber e a interpretar um extenso número de imagens, sons e interacções, a fomentar múltiplas produções de sentido e a alargar a minha experiência prática a um conjunto de ensinamentos teóricos que de uma outra forma dificilmente conseguiria adquirir. É essa a verdadeira arte dos videojogos, quando nos fazem pensar no que jogamos.

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Bibliografia consultada:

BERENS, Kate e HOWARD, Geoff (2008), The Rough Guide to Videogames, London: Rough Guides.
BYRON, Simon et al. (2006), Game On! From Pong to Oblivion – The 50 Greatest Video Games of All Time, London: Headline Publishing Group.
HESS, Walter (2001), Documentos Para a Compreensão da Pintura Moderna, Lisboa: Livros do Brasil.
HUISMAN, Denis (2005), A Estética, Lisboa: Edições 70.
MARTIN, Brett (2007), “Should Videogames be Viewed as Art?”, CLARKE, Andy e MITCHELL, Grethe, ed., Videogames and Art, Chicago: Intellect Bristol, pp. 201-10.
MARTIN, Marcel (2005), A Linguagem Cinematográfica, Lisboa: Dinalivro.
WILTSHIRE, Alex (2009), “State of the art”, Computer Arts Projects: The Art of Videogames, n.º 121, pp. 53-8.