The Last Guardian conta-nos a história de uma viagem extraordinária de
dedicação, perseverança e superação. Conta-nos a história de uma criança, de
uma enorme criatura (Trico) e da relação de confiança, amizade, amor que vai
sendo fomentada entre os dois ao longo do jogo. Nós jogadores, fazemos parte
dessa relação, interagimos, criamos, experimentamos, exploramos os mais
diversos cenários que compõem o mundo virtual que Fumito Ueda decidiu criar.
Dando seguimento ao seu portfólio ímpar (Ico e Shadow of the Colossus), são
notáveis as inúmeras referências e o seu cunho pessoal nos elementos que compõem as mais diversas imagéticas interactivas.
Existe uma certa magia em todos os jogos de Fumito Ueda e The Last Guardian
não é excepção. É um jogo que vem preencher uma “falha” na indústria dos
videojogos pois apresenta-nos uma experiência muito característica e
diferenciada como já não se via desde 2005, precisamente com o último trabalho de Ueda. Um mundo
virtual de contrastes para descobrir, com luz e escuridão, amplo e limitado,
pacífico e perigoso, vibrante e cinzento, vazio e preenchido. Um mundo
desenhado tanto para Trico como para a criança, um mundo confinado a fronteiras
bem definidas mas ao mesmo tempo aberto à navegação.
The Last Guardian mostra-nos uma visão fiel aos princípios artísticos de
Fumito Ueda: dar realismo à sua imaginação criativa. Esse "realismo" encontra-se
no jogo representado por Trico que nos acompanha do início ao fim. Uma mescla
de diferentes animais num só. Uma personagem viva, orgânica e com vontade
própria, que preenche os diversos cenários e rouba todo o protagonismo na
narrativa que se vai desenrolando ao longo da progressão. O jogo começa com
Trico acorrentado, ferido, cansado, agitado e agressivo, que suspeita de
qualquer tipo de abordagem mais directa por parte da criança. Sente-se um medo
na escuridão do cenário frio que nos é apresentado. O silêncio é interrompido
por breves pensamentos do narrador ou por sons de aflição e suspeição que Trico
emite às tentativas de aproximação da criança. Temos aos poucos que tentar
ajudar Trico, comunicar com ele, alimentá-lo, remover todas as lanças que tem
espetadas no seu corpo uma a uma e subir para cima dele a fim de o libertar da
corrente que tem presa ao pescoço. Esse primeiro momento no início do jogo
marca uma importante correlação entre a forma e o conteúdo, uma pequena mudança
das cores na estética do jogo (cores mais luminosas, quentes, vibrantes) permitem
enaltecer a mudança que ocorre também no estado de espírito de ambas as personagens,
que começam a partir daí a desenvolver algo verdadeiramente especial e
comovente.
O ritmo propositadamente lento da jogabilidade dá tempo suficiente para
amadurecer uma relação de amizade, confiança e compreensão. Com o passar das
horas, Trico e a criança vão-se tornando num só. As suas capacidades, os seus
pontos fortes e fracos complementam-se numa cooperação constante entre si, pensada
desde o início para a resolução dos mais diversos puzzles e obstáculos que vão
surgindo pelo caminho. Trico luta, salta e protege sempre a criança, colocando
a sua própria vida em risco. É comovente vermos Trico parado numa plataforma,
vulnerável e impedido de progredir por alguma razão e sempre a olhar para a
criança que tenta por outro caminho desimpedir a passagem. A animação na sua
expressão de preocupação e receio assim como os sons que vai emitindo, acabam
por manter a relação sempre próxima e presente apesar da distância que, por
vezes, possa ocorrer.
The Last Guardian tem falhas graves de execução que não podem ser ignoradas
(implementação da câmara em espaços fechados, algumas falhas ao nível das
colisões e interface, por vezes, intrusiva e datada) mas que sem elas não seria
a mesma coisa. The Last Guardian não é apenas um videojogo mas sim um
importante pedaço de história de uma indústria cada vez mais exigente e impaciente.
Uma história que conta também uma viagem de quase uma década de
desenvolvimento, de dedicação, perseverança e, sobretudo, superação, com pontos
fracos e pontos fortes, com erros graves e qualidades notáveis, que mostram
claramente todo um complexo trabalho de evolução e de consolidação ao longo do
tempo. No jogo o mesmo acontece com a criança (e por extensão com o jogador)
que também precisa do seu tempo para fomentar uma relação de interação quase
perfeita com Trico.
Existe um claro problema ainda mais grave com The Last Guardian que se deve ao
simples facto de não ser um videojogo mainstream como parece ter sido forçado
a ser. Não é um videojogo de 3 estrelas e meia ou de 84%, não é um Call of
Duty, não é um Ico nem mesmo um Shadow of The Colossus. The Last Guardian é e
será um videojogo único e diferente, uma fonte inesgotável de inspiração com
momentos de excelência pura marcados, acima de tudo, pela independência de um árduo trabalho pautado por uma elevação artística
verdadeiramente notável. Hideo Kojima ou Hidetaka
Miyazaki da From Software que o digam. The Last Guardian é uma viagem no tempo, um recuo às memórias de infância
claramente marcadas por diversas construções afectivas que nascem e crescem a
partir da liberdade de fantasiar, brincar, explorar, aprender e aceitar. É um videojogo que conta a história de superação de uma amizade só possível fruto da imaginação. Uma viagem que demora o seu tempo a ser contada tal como o jogo demorou o seu tempo a ser criado. Mas valeu a pena esperar. The Last Guardian
não será certamente um videojogo para todos. Para mim é e será.