Embora possa
parecer uma ideia paradoxal, é importante salientar que a comunicação não só é
caracterizada por um poder incalculável como também por uma preocupante
vulnerabilidade. Isto porque a abertura interpretativa à qual convida, poderá
conduzir a uma liberdade ilimitada e, por vezes, perigosa, perante a sua
flexibilidade e a ambiguidade dos seus efeitos. Os videojogos, ao usufruirem de
potencialidades comunicativas inegáveis, conseguem veicular mensagens
importantes e construtivas através de experiências jogáveis significativas. Mas
alguns, independentemente da qualidade
questionável da sua concepção, poderão gerar grandes polémicas devido às intenções
melindrosas dos seus criadores no aproveitamento dessas potencialidades.
A obra
intitulada A Tirania da Comunicação
de Ignacio Ramonet é um pequeno ensaio que convida o leitor a uma reflexão mais
atenta sobre os conceitos de democracia e liberdade que parecem triunfar nas
televisões de forma cada vez mais notória. Os poderes políticos e autoritários
que dantes controlavam a televisão foram substituídos, ao longo dos anos, pela
proliferação de uma liberdade expressiva, por vezes, incontrolável. A
modernização da televisão tornou-a perigosa, transformando as suas qualidades
em defeitos e as suas virtudes em vícios. A tirania é, sobretudo, o que
caracteriza, actualmente, o poder da comunicação e que resulta de uma falta de
harmonia gritante entre os standards
mínimos de qualidade exigida. Uma espécie de “ópio do povo” que procura
apresentar espectáculos no sentido de distraír e desviar o público da sua
actividade cívica. Partindo desta ideia, é possível traçar um paralelismo
interessante entre a televisão e os videojogos. Da mesma forma que a indústria
televisiva apresenta muitos programas imbuídos no conceito denominado trash TV, “em que a vulgaridade e a
grosseria são explicitamente reinvindicados como meios de comunicação
fundamentais com o público” (Ramonet, 1999: 79), também na indústria dos
videojogos é possível mencionar alguns títulos que poderiam muito bem fazer
parte de um novo conceito denominado de trash
games. “Perante o agravamento das inquietações colectivas”, a televisão “procurou
transformar em espectáculo as desgraças sociais” (Ramonet, 1999: 79). Alguns videojogos
acabam por reflectir uma ideia de espectáculo negativo semelhante perante uma
certa dose de controvérsia, deselegância e, por vezes, muito mau gosto. Ao
invés de procurarem criar experiências interactivas que possam ser, de alguma
forma, construtivas, muitos dos criadores ou das produtoras responsáveis por
este tipo de jogos procuram, sobretudo, maior exposição e protagonismo
independentemente da polémica que as suas criações possam fomentar, pois
consideram que uma crítica negativa é melhor do que crítica alguma. Como tal,
os títulos mencionados em seguida, são apenas alguns exemplos que, pelas piores
razões, marcam negativamente a história dos videojogos (ver Berens e Howard,
2008: 50-1).
Em Custer’s Revenge, lançado em 1982 para
a Atari 2600, o jogador controla o General George Armstrong Custer representado
parcialmente despido num deserto. O objectivo consiste em desviar-se das setas
atiradas pela tribo de índios a fim de se aproximar da mulher indígena que, no
lado oposto do ecrã, se encontra amarrada a um cacto completamente nua e
vulnerável. Como seria de prever, este título gerou inúmeros protestos nos
Estados Unidos da América por parte de várias organizações dos direitos humanos
alegando que o possuía conotação racista e machista.
PornStar
3D: Hail to The Beef é um videojogo pornográfico baseado
no escândalo sexual que envolveu o ex-presidente dos Estados Unidos da América
Bill Clinton e Monica Lewinsky. Tendo como cenário algumas das divisões da Casa
Branca em Washington, como a sala oval por exemplo, o jogador controla as
acções de Bill Clinton bem como a perspectiva das câmaras como forma de alargar
os limites da liberdade visual e de superar possíveis restrições imaginativas. Esse controlo traduz-se
no principal poder que é dado ao longo da experiência interactiva sendo o seu
resultado o apogeu de um certo voyeurismo
desconcertante. Sem nenhum objectivo concreto, PornStar 3D: Hail to The Beef acaba por complementar as notícias de
um episódio mediático através de uma experiência “jogável” sobre um
acontecimento apenas relatado. Os jogadores podem assim explorar os limites que
a liberdade das acções e do controlo das câmaras permitem mostrar.
Hooligans:
Storm Over Europe aborda o problema real e muito grave
da violência no desporto entre claques ou grupos de adeptos. O objectivo do
jogador é tornar o seu grupo de hooligans
o mais conhecido em toda a Europa. Embora procure afirmar-se como um jogo de
estratégia, a sua pobre concepção aliada a um humor negro desmedido acabou por
condenar o jogo ao fracasso. Com o slogan “The only thing to fear, is running
out of beer!”, Hooligans: Storm Over
Europe reforça a já má imagem associada ao hooliganismo perante o consumo de bebidas alcoólicas e drogas,
muitas vezes na origem dos violentos confrontos que resultam em ferimentos
graves ou mesmo na morte de adeptos. Hooligans:
Storm Over Europe é pois um título que arrasa por completo a imagem de
comunhão e de festa que deveria haver tanto no futebol como em qualquer evento desportivo.
America’s
10 Most Wanted: The War on Terror é um videojogo que
ao invés de criticar e condenar a política de George W. Bush no que respeita ao
terrorismo, transforma-a em entretenimento. Perante a frase “connosco ou contra
nós” que definiu a linguagem autoritária e explícita de Bush no seu discurso, o
jogo não se limita apenas a excluir por completo a neutralidade como posição séria nesta guerra como
também reforça a aliança com os Estados Unidos da América como sendo a solução mais
indicada. Com os acontecimentos do 11 de Setembro e no Afeganistão ainda
recentes na memória e com os Estados Unidos da América num constante clima de
medo e insegurança, America’s 10 Most
Wanted: The War on Terror ilustra a cooperação estratégica numa intensa
caça ao homem ao incentivar os jogadores a “fazerem parte da solução”,
perseguindo e eliminando os diversos líderes terroristas da lista do FBI, entre
os quais, o na altura líder da Al-Qaeda, Osama Bin Laden.
JFK:
Reloaded foi criado com o intuito de simular o
acontecimento que ditou a morte do presidente dos Estados Unidos da América
John F. Kennedy. Acontece que ao contrário dos muitos documentários que existem
sobre o seu assassinato, este título apresenta uma perspectiva polémica ao colocar
o jogador no papel do assassino com o objectivo de assegurar a recriação dos
factos que marcaram a história. Contudo, a polémica foi ainda maior uma vez que o
jogo foi lançado no dia 22 de Novembro de 2004, precisamente 41 anos após a
morte de John F. Kennedy (Berens e Howard, 2008: 51). Agora gratuito, qualquer
jogador que experimente JFK Reloaded
deverá pensar sobre se o jogo foi realmente desenvolvido para simular um facto
histórico ou se foi desenvolvido deliberadamente para “chocar” o público. Seja
como for, a produtora Traffic Games responsável pela sua criação acabou por
falir e desaparecer no meio de um forte criticismo por parte de diversos
políticos e comentadores.
Super
Columbine Massacre RPG! é um videojogo online que procura recriar o massacre de
Columbine no dia 20 de Abril de 1999, no qual dois alunos entraram na escola
armados e mataram alguns dos seus colegas e professores acabando no fim por se
suicidarem. Tanto a exclamação no próprio título como a justificação dada pelo
seu criador Danny Ledonne de se tratar de um jogo que “implore introspecção”
aos jogadores (Berens e Howard, 2008: 51), parecem não ser suficientes para
fazer deste título uma crítica dura às graves falhas no sistema do país - da
mesma forma como Gus Van Sant conseguiu através do seu filme Elephant - ou um exercício de observação
sério aos fenómenos psíquicos da própria consciência. Como muitas vezes acontece nas notícias
televisivas, “o objectivo não é levar-nos a compreender uma situação, mas
permitir-nos assistir a uma (des)ventura” (Ramonet, 1999: 37) e Super Columbine Massacre RPG!
permite-nos jogar uma (des)ventura, podendo resultar numa aversão e
desconfiança em relação às verdadeiras intenções de Danny Ledonne.
É interessante verificar que apesar da enorme
polémica e da comunicação viral em torno dos títulos mencionados,
muitos ficaram marcados por um enorme fracasso ao nível de vendas perante a
clara reprovação por parte de uma grande maioria de jogadores. A verdade é que
se não abordassem temas polémicos e susceptíveis ao interesse de uma
comunicação social cada vez mais entregue ao “sensacionalismo a qualquer custo”
(Ramonet, 1999: 102-3), grande parte destes videojogos passariam facilmente
despercebidos (McCarthy et al.,
2005: 166-71).
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Referências bibliográficas:
BERENS, Kate e HOWARD, Geoff (2008), The Rough Guide to Videogames, London: Rough Guides.
MCCARTHY et al. (2005), The Complete Guide to Game Development, Art & Design, Cambridge: The Ilex Press.
RAMONET, Ignacio (1999), A Tirania da Comunicação, Porto: Campo das Letras.
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Referências bibliográficas:
BERENS, Kate e HOWARD, Geoff (2008), The Rough Guide to Videogames, London: Rough Guides.
MCCARTHY et al. (2005), The Complete Guide to Game Development, Art & Design, Cambridge: The Ilex Press.
RAMONET, Ignacio (1999), A Tirania da Comunicação, Porto: Campo das Letras.